Clínica em hipermercado em Almada gera polémica

Médicos que praticam telemedicina em Almada arriscam processo

A Ordem dos Médicos vai pedir esclarecimentos à Entidade Reguladora da Saúde e à Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo sobre as condições de licenciamento da Clínica do Centro, que o grupo Auchan, em parceria com outra empresa, abriu recentemente ao lado de um hipermercado, em Almada. A Ordem pondera ainda processar médicos que estejam a praticar, "em primeira linha", a telemedicina naquela clínica. É que, justificou, estão a violar o código deontológico. A Clínica do Centro, a funcionar desde Julho no Forum de Almada, contrapõe e diz que "trata-se de um projecto pioneiro" no país e que "está tudo dentro da lei". De acordo com a administração, a clínica "tem como intuito aproximar a população geral a prestadores de cuidados de saúde qualificados", e diz que, quando não há capacidade para tratar o doente, ele "é referenciado para outro local e nada é cobrado". 


Clínica do Centro abriu portas em Julho no Forum de Almada 


A polémica surgiu depois de uma notícia do jornal Público sobre o assunto. Durante o dia de sexta-feira, a empresa responsável, em comunicado enviado à agência Lusa, diz que, por se tratar de um projeto pioneiro em Portugal, houve o cuidado de, antes de se iniciar o processo de licenciamento, abordar as duas ordens e os organismos reguladores da área da Saúde.
"Estivemos inclusive reunidos com o departamento jurídico da Ordem do Médicos, ainda na fase prévia à implementação do projeto. Adicionalmente, reunimos com a Ordem dos Enfermeiros, com a Administração Central do Sistema de Saúde e a Entidade Reguladora de Saúde, sendo que nenhuma destas entidades nos informou, formal ou informalmente, da existência de um quadro legal e/ou deontológico contrário ao modelo que decidimos implementar", garante a empresa no documento.
Além de se dar garantias em termos de licenciamento e sigilo quanto aos doentes, o comunicado explica que a Clínica "tem como intuito aproximar a população geral a prestadores de cuidados de saúde qualificados", e diz que, quando não há capacidade para tratar o doente, "ele é referenciado para outro local e nada é cobrado".
Em declarações à Lusa, e reagindo a críticas da Ordem dos Médicos, fonte da direção da empresa disse que são enfermeiros quem faz na clínica uma primeira triagem, "como em qualquer serviço de urgência dos hospitais", e que só depois é admitido na consulta o doente que for passível de ser tratado. A consulta é por telemedicina e o médico tem acesso a dados vitais recolhidos pelo enfermeiro, esclareceu.
Quanto ao facto de não ser possível passar receitas, o responsável esclareceu também que, na maior parte dos casos, "são doenças que não requerem antibióticos", por serem mais simples de tratar, porque, caso contrário, são os médicos da clínica que aconselham e reencaminham o doente para outros locais.
"Queremos é facilitar a vida às pessoas, estar próximos delas", disse a fonte, acrescentando que "a recetividade é muito boa" e que o conceito é ainda novo e que a polémica resulta de "interpretações erradas" .
"O conceito já foi testado e validado noutros países (muitos deles considerados como modelos de eficácia e de excelência na prestação de cuidados de Saúde, como são a Suécia ou a Finlândia), pelo que a questão ética/deontológica não é sequer colocada em causa nestes países em que este tipo de modelo de atendimento é algo que se tornou comum. Portugal faz parte da mesma comunidade europeia, os patamares éticos/deontológicos são semelhantes, pelo que acreditamos que se trata mais de uma questão de reação a um modelo novo e pioneiro", diz-se no comunicado.

 “Uma flagrante violação deontológica" diz a Ordem dos Médicos 
A Ordem dos Médicos vai pedir esclarecimentos à Entidade Reguladora da Saúde e à Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo sobre as condições de licenciamento da Clínica em Almada.
A empresa de origem francesa, dona do Jumbo, está desde Julho a testar o conceito na loja de Almada, onde um enfermeiro atende doentes sem marcação entre as 10 e as 24 horas, com um custo de 30 euros. O contacto com o médico é feito através de sistemas de telemedicina ou videoconferência, situação que para o Conselho Nacional Executivo da Ordem dos Médicos “viola de forma objectiva os artigos 94º a 97º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos (CDOM), que regulam a utilização de telemedicina, e não cumpre o dever de protecção de dados e confidencialidade defendido pela Comissão Nacional de Protecção de Dados”.
Em comunicado,  a ordem classifica o negócio como uma “forma de vender gato por lebre e transformar a medicina num mero comércio, que será potencialmente prejudicial aos doentes”. Os médicos entendem que as competências destes profissionais são “ultrapassadas de forma ostensiva” e recordam que a ausência de legislação específica sobre o Acto Médico “é uma inconstitucionalidade que urge reparar para melhor servir os doentes”.
A ordem critica ainda a “legitimidade técnica” do espaço, já que a actual lei é “altamente exigente”. “Estarão estas clínicas a respeitar idênticas regras de licenciamento? Ou, porventura, estão a ser aplicadas regras mais flexíveis, ‘amigas’ do investimento e das grandes empresas?”, questiona. Tendo em conta estas preocupações, a ordem vai pedir esclarecimentos aos reguladores “sobre as condições de licenciamento da referida clínica”.
Associar a prestação de cuidados médicos a uma actividade de comércio é, para a ordem, “uma flagrante violação deontológica e a definitiva imposição de um modelo mercantilista da Saúde”. A organização apela, assim, aos médicos para não “pactuarem com este tipo de exercício clínico de intuitos meramente lucrativos”. 
Sobre o anúncio à consulta médica que é, presencialmente, feita por um enfermeiro, a ordem questiona se se trata de “existência de publicidade enganosa”. A confirmar-se admite avançar para os tribunais. O extenso comunicado de imprensa termina com um aviso: “A má prática médica, nomeadamente a violação grosseira do artigo 33º (condições de exercício da medicina) do CDOM entre outros, será alvo dos respectivos procedimentos disciplinares”, conclui a Ordem dos Médicos.

Auchan desmarca-se da clínica 
O Grupo Auchan já esclareceu que nada tem a ver com a "exploração e gestão" da clínica médica instalada no Almada Fórum e que apenas cedeu o espaço para a instalação daquela unidade de saúde privada.
"Ao contrário do que tem sido transmitido, não é o grupo Auchan que está a lançar esta área de negócio, apenas ofereceu o espaço para a instalação deste novo conceito, que já existe nos EUA e na Escandinávia", disse à Lusa o assessor de imprensa do grupo.




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