Dona Vitória

Reticências da Sociedade by Ana Sofia Horta
Dona Vitória

Durante três meses fui enfermeira, auxiliar de enfermagem em geriatria e conheci uma senhora idosa com 87 primaveras. Ler, ver TV e ter companhia era o que mais gostava, o neto de 36 anos tratava-a como uma mãe, onde ele ia, ela também ia, fazia viagens do Algarve a Lisboa, Lisboa ao Algarve, e enquanto o neto trabalhava ela via televisão lia a bíblia, revistas, quando queria ir a casa de banho gritava por alguém para que a ajudassem, era consciente sabia tudo, os nomes todos. Apenas ouvia muito mal e precisava que escrevêssemos para falarmos com ela.



Do nada começou a vomitar e a ter grandes diarreias, mudamos alimentação o médico foi a casa e detectou uma lesão no abdómen, passados uns dias as melhoras não eram visíveis.
No hospital foi diagnosticado uma infecção no abdómen e mais as outras coisas todas, passou o Natal e a passagem de ano no hospital. Voltou a casa e ao fim de poucos dias voltou ao Santa Maria com uma infecção nos pulmões entre outras coisas. É transferida para Cascais, entrada pelas urgências com pulseira verde, já não tinha a infecção e fica horas a fio numa maca à espera de ser atendida. Esteve a antibiótico e nunca se soube porquê. Ver o médico era quase impossível. Mas todos os dias estávamos lá. Fazíamos chantagem para ela comer se comesse dávamos-lhes uma surpresa, ou uma banana ou um iogurte. Adorava queques e bolos de arroz.
Dia 20 tinha um olhar vazio, consciente falava connosco, mas tinha o olhar azul despido, falei com a enfermeira para estar atenta porque algo se passava.
Dia 21, 7.30 recebesse a notícia do falecimento – febre com convulsão.
Não sabemos de onde vem a febre e nenhum de nós se dirigiu a Cascais, a certidão de óbito demorou a ser passada, tratamos do funeral e a família do Algarve vem para Lisboa.
E do nada, a vida nada vale. Basta um segundo e tudo muda. Teve o melhor neto que alguém podia ter. Foi mais que uma avó!
Onde quer que esteja, que esteja em paz e olhe pelo neto como ele fazia por ela.
Sempre foi uma mulher forte e nada a abalava... até um dia.


Ana Sofia Silva Horta
Educadora de Infância no Desemprego
Oeiras 

[Escreve todas as terças-feiras na rubrica Reticências da Sociedade]





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