Autarquia de Setúbal perde milhões de euros com terrenos doados ao Vitória

Ligações pouco claras comprometem autarquia, clube e empresas privadas em negócios 

A doação de terrenos urbanos por parte da Câmara Municipal de Setúbal ao Vitória de Setúbal, apresentada como uma tábua de salvação financeira para o histórico clube sadino, acabou por resultar numa operação altamente penalizadora para o município. Os lotes foram vendidos a preço reduzido, integrados num negócio falhado e surgem agora associados a uma empresa insolvente envolvida num processo de fraude ligado aos chamados “vistos gold”, revela uma investigação do jornal Público. O Vitória reagiu em comunicado e nega negócios com a empresa mencionada e confirma que projeto do Bonfim com a Mirante Sideral [uma empresa sem atividade conhecida] é essencial para cumprir plano de insolvência de 9,3 milhões de euros. 
Estádio do Bonfim no centro da polémica


Foi a 27 de Julho de 2020 que a então presidente da Câmara Municipal de Setúbal, Maria das Dores Meira, formalizou a doação de 65 lotes urbanos ao Vitória de Setúbal. A medida foi justificada como essencial para resgatar o clube de uma situação financeira crítica, marcada por dívidas fiscais e desportivas e por sucessivos Processos Especiais de Revitalização falhados da sua Sociedade Anónima Desportiva, entretanto extinta.
A escritura de doação previa apenas uma hipoteca unilateral destinada a garantir cerca de 1 milhão de euros em dívidas fiscais da SAD. Não foram incluídas cláusulas de reversão, limites à revenda dos terrenos ou qualquer obrigação de afetação desportiva. À data, o Conselho Fiscal do clube alertou para o risco de o património doado acabar por ser transferido para a SAD, uma entidade juridicamente distinta e fortemente endividada, refere o Público.

A entrada da Importantaltura e promessas milionárias
Em Junho de 2021, o Vitória de Setúbal celebrou um acordo com a Importantaltura, empresa que viria mais tarde a ser declarada insolvente. O negócio envolveu a cedência de 89 por cento das ações da SAD, com a promessa de assunção de cerca de 63 milhões de euros em passivos e a concretização de vários projetos imobiliários.
O entendimento incluía ainda a expectativa de nova cedência de 41 lotes por parte da autarquia e operações urbanísticas no Vale do Cobro e na zona do Estádio do Bonfim, onde estava prevista a construção de um novo recinto desportivo.
Em Julho de 2021, Hugo Pinto, associado à Importantaltura, afirmou ter injetado cerca de 2 milhões de euros, verba que permitiu ao clube inscrever a equipa na Liga 3 e obter declarações de inexistência de dívidas à Autoridade Tributária e à Segurança Social.

Terrenos pagos com dinheiro emprestado
Um mês antes, em Maio de 2021, a SAD aceitara um empréstimo de cerca de 1,3 milhões de euros da Importantaltura. Dois anos mais tarde, esse valor foi parcialmente liquidado através da entrega dos terrenos das Praias do Sado.
Já em 2023, numa fase de pré-rutura financeira, o Vitória vendeu os 65 lotes urbanos à mesma empresa por cerca de 800 mil euros, um montante muito inferior aos valores de mercado, confirmou o Público. Na prática, a Importantaltura adquiriu património valioso utilizando o mesmo dinheiro que afirmava ter emprestado ao clube, sem que qualquer um dos compromissos assumidos tivesse sido concretizado.
No mais recente plano de recuperação apresentado no âmbito da insolvência, entregue na passada quarta-feira, a Importantaltura classificou os terrenos como ativos livres de encargos legais e atribuiu-lhes um valor estimado de mercado de cerca de 1,6 milhões de euros, o dobro do montante pago ao Vitória, revela a mesma investigação. 

Vitória reage e afasta-se da empresa insolvente
Perante a divulgação do caso, o Vitória de Setúbal emitiu esta segunda-feira um comunicado onde procura esclarecer a sua posição relativamente aos negócios denunciados pelo jornal Público, nomeadamente a cedência de terrenos doados pela autarquia no âmbito do Plano de Insolvência e Recuperação de Empresa em curso.
A direção do clube começa por sublinhar que “o Vitória Futebol Clube não tem qualquer contrato ou negócio pendente com a sociedade Importantaltura”, acrescentando que o acordo relativo à compra e venda de ações da SAD “foi resolvido há mais de um ano, muito antes da entrada em funções dos atuais órgãos sociais, em Março de 2025”.
No comunicado, o clube esclarece ainda que “a relação que existiu vinculava somente a SAD” e que “os valores reclamados pela Importantaltura não foram reconhecidos no âmbito da insolvência e liquidação da SAD”, garantindo que a empresa “nada tem a receber da massa falida da SAD e ou do Vitória Futebol Clube”.

Projeto imobiliário visto como vital para o futuro
A direção sadina afirma possuir também “uma declaração, assinada pela gerência da Importantaltura, em que a sociedade expressamente renuncia a todo e qualquer direito sobre o Vitória Futebol Clube” e reconhece que alguns dos factos agora conhecidos eram desconhecidos dos atuais responsáveis, incluindo “as relações pessoais entre alguns intervenientes nos processos”.
Segundo o clube, o único contrato atualmente em vigor é com a sociedade Mirante Sideral, relativo a um projeto imobiliário no Estádio do Bonfim. “O projeto imobiliário é essencial para a sobrevivência do Vitória Futebol Clube”, sustenta a direção, explicando que é nesta operação que assenta o Plano de Insolvência e Recuperação de Empresa homologado pelo Tribunal do Comércio de Setúbal. 
Mas segundo a notícia do Público: há um enigma chamado Mirante Sideral e o projeto imobiliário do Bonfim. A empresa sem atividade, adquirida por advogado ligado a credores da Importantaltura, surge como veículo para negócio de 25 milhões de euros no coração de Setúbal. 
Através deste projeto, o Vitória pretende “obter a receita necessária para o bom cumprimento do PIRE, cujas obrigações ascendem a cerca de 9,3 milhões de euros”, acrescentando que a sua boa execução permitirá “o saneamento financeiro do clube e o início de um ciclo de sustentabilidade a partir de dívida zero”.

Câmara apenas como entidade licenciadora

No mesmo documento, o Vitória esclarece que o contrato com a Mirante Sideral abrange “apenas e exclusivamente os dois lotes correspondentes aos topos do atual Estádio do Bonfim”, sublinhando que os terrenos do Vale do Cobro “não estão incluídos em qualquer contrato ou negócio em vigor”.
A ligação do Município de Setúbal a este processo resume-se, segundo o clube, ao papel de entidade licenciadora do projeto imobiliário, nomeadamente na apreciação do Pedido de Informação Prévia que se encontra em fase final de análise.
A direção do Vitória de Setúbal reafirma, por fim, o seu compromisso com a transparência e com a concretização do projeto como condição para “preservar o legado de uma instituição com 115 anos de existência” e garantir a continuidade da prática desportiva de mais de duas mil crianças e jovens ligados ao clube.

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