Palmela com 132 casos de violência doméstica

Violência doméstica, crimes escondidos



 Trinta e nove mulheres [oito no distrito de Setúbal] morreram este ano vítimas de violência doméstica e 37 foram alvo de tentativa de homicídio. Os crimes ocorram, na maior parte das situações, pelos cônjuges, namorados ou companheiros. Os números apontam para o aumento da violência em relação ao ano passado: são mais 10 mortes e nove tentativas do que em 2009, tendo os distritos de Lisboa e Setúbal maior concentração de casos. No Distrito de Setúbal, Palmela é “onde se registam maior número de casos de denúncia”. Quem lida de perto com este problema apela à necessidade de maior celeridade na aplicação da lei, a adopção de medidas de coação, como a vigilância electrónica e o afastamento do agressor. Quem sofre ainda só a muito custo partilha a sua vida.

Palmela é o concelho mais problemático do Distrito de Setúbal, em relação a casos de violência doméstica. Em 2009 a GNR instaurou 224 processos e este ano [até Outubro] já foram denunciados 132 casos no concelho. 58 em Pinhal Novo [em 2009 foram 155], 57 em Palmela [em 2009 foram 65] e 17 no Poceirão [em 2009 foram 20].  De acordo com o Major João Nortadas, Chefe da Secção de Investigação Criminal do Comando Territorial da GNR de Setúbal, “a violência doméstica é uma coisa que, normalmente, se passa dentro de portas em que muitas vezes a vítima,  por diversos factores, não apresenta a queixa e daí que estes números estatísticos são os números de quem teve a coragem de apresentar denúncia”. Desta forma haverá muito mais casos que continuam sem denuncia. Assim, de acordo com o Major João Nortadas, “é importante que os vizinhos e os cidadãos que se apercebam de uma situação de violência doméstica possam também denunciar para que a GNR investigue”.
Ainda assim o responsável pela GNR mostra-se optimista em relação a estes números. “Se Setúbal está no topo da lista de deste tipo de crime não significa literalmente que haja muita violência doméstica no Distrito. Pode é significar que as entidades do Distrito estão a fazer um trabalho para que este crime seja divulgado, denunciado e para que chegue à justiça”.  
O Ministério Público reforça a ideia de que é preciso “promover um melhor sistema que não passa só pela apreciação da lei”, mas por uma educação desde cedo. “Todos nós temos o dever de educar e agir contra qualquer acto de violência”, contou João Valente, magistrado em Setúbal que conhece bem o problema social do concelho de Palmela. Apesar disso, conta o magistrado, “os tribunais não vão resolver este problema já se trata de um problema social”. 
A melhor maneira de trabalhar com casos de violência doméstica é em parceria. A Guarda Sandra Rafael, do núcleo de investigação e de apoio à vítima da GNR de Setúbal, destacou a importância das parcerias e da rede de apoio. A guarda diz que “a cumplicidade entre as entidades é fundamental para ajudar. A vítima quando chega até nós está completamente destroçada, com vários problemas, precisa de ser imediatamente encaminhada e para isso precisamos da ajuda de várias entidades”.
As alterações, quer na lei quer na maneira como as forças de segurança lidam com o problema têm tido uma melhoria muitíssimo significativa nos últimos 10 anos.
“Hoje uma mulher que se dirija a uma esquadra da PSP ou a um posto da GNR é recebida por agentes com formação que fazem o encaminhamento devido da situação e antes não era assim”, destaca Catarina Marcelino, deputada socialista. Mas apesar disso há muito para fazer ainda, lembra João Valente do Ministério Público. “Dos 640 processos só cinco chegaram a julgamento e terminaram em penas suspensas e multas”.

Violência começa no namoro...

Histórias de quem ama e odeia ao mesmo tempo são cada mais frequentes nos lares de todo o mundo. Apesar das leis terem mudado, as mulheres continuam a ser agredidas psicológica e fisicamente nas suas casas e a calarem por medo, por respeito, os homens continuam a “agredir” e a continuam, tantas vezes, impunes apesar de, por lei, o crime de violência doméstica ser crime público. E a violência começa cada vez mais cedo.
Se para alguns um pontapé ou uma bofetada são encarados como formas cruéis de violência, para outros são sinónimos de amor. Parece impossível à primeira vista mas cada vez mais jovens usam a violência como prova do seu afecto.
“Disse-lhe que não queria usar aliança porque nunca achei que uma ‘anilha’ simbolizava o amor. O afecto revela-se nas atitudes para com a pessoa amada e não com um simples anel. Não tinha nada a provar a ninguém excepto ao Mário. Ele não aceitou a resposta. Queria à força que usássemos aliança por isso começou a insultar-me. Eu ripostei. Ele passou-se e deu-me uma forte bofetada dizendo ‘tu és minha e vais usar a m… da aliança porque eu quero’. Na altura chorei porque me magoou mas depressa pediu-me desculpa e disse que me bateu porque gostava muito de mim e não me queria perder. Pouco tempo depois voltou a fazê-lo, sempre por coisas mínimas, e acreditei que ele apenas me batia por amor. Hoje, vejo o quanto fui estúpida e não quis ver a realidade: o Mário era violento e obsessivo.” Aida, nome fictício,  tem hoje 23 anos e vive em Palmela com os pais, é uma das jovens portuguesas que se deixam bater em “nome do amor”. Cada vez mais cedo, os jovens começam as suas relações no seio da violência, sejam eles agressores ou agredidos. Aida nunca fez queixa e, por isso, o crime ficou por punir. Hoje, diz Aida, “o Mário tem outra mulher, com uma filha, e sei que lhe bate mas o problema já não é meu”, confessa ao Novo Impacto.

Medidas de coação são essenciais

Entre 2004 e 2010, o Distrito de Setúbal registou 24 homicídios, oito dos quais no corrente ano. Um número que revela um aumento em relação a 2009 (3), de acordo com dados da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR). Durante este período há, ainda, a assinalar 12 tentativas de homicídio, no Distrito. Para a UMAR estes números mostram que apesar dos avanços na legislação portuguesa “não estamos a ser eficazes no combate a este tipo extremado de violência doméstica”.
Os dados foram corroborados pela directora da Polícia Judiciária (PJ) de Setúbal. Maria Alice Fernandes alerta que é preciso sensibilizar as autoridades judiciárias para que se encontre uma solução para que os agressores sejam afastados das vítimas através de medidas de coação que impeçam que o agressor chegue a situações limite.
 “Entre o início de 2007 e meados de 2010 temos 17 homicídios em que a violência doméstica está sempre a montante, em que ao agressor, após muitas diligências, nunca foi arbitrada uma medida de coação de afastamento da vítima. Esta é uma questão para a qual temos de sensibilizar as instituições judiciárias”, referiu. “O acompanhamento do agressor também é importante ser feito. Falamos em casos relacionados com alcoolismo, toxidependência e vicio ao jogo que numa época de crise financeira aumenta em muito”.  Para evitar muitos casos “de morte” a directora da PJ de Setúbal apela para “medidas de coação logo nos primeiros actos violentos”. E uma das melhores medidas seria, por exemplo, o trabalho comunitário. “Era muito importante que os agressores fossem ‘obrigados’ a esse regime porque era uma forma de a comunidade os vigiar. Em vez de estarem aos fim-de-semana em casa e depois ir beber deveriam de ir trabalhar às 9h da manhã. E com isso, talvez, evitavam-se muitas coisas logo nas primeiros sinais de violência”. 
Também Sónia Reis, da Associação Portuguesa de Apoio à Vitima (APAV), acha que faltam, ainda, grandes passos para que se consiga chegar a um trabalho que proteja as vítimas. “As medidas de coação têm de ser aplicadas e ainda não são como devem ser. As condenações passam na sua maioria pela suspensão e algumas passam por pagamentos de multas a instituições. Isto em termos de prevenção não tem grandes resultados e, portanto, vamos ter com certeza a continuação daquele crime, se calhar não com aquela mulher mas com outras”.
A mesma opinião tem Sónia Soares, da UMAR. “Necessitamos de uma justiça mais célere. Precisamos da aplicação de medidas de vigilância electrónica e medidas do afastamento do agressor. Portugal tem feito uma excelente evolução na área da violência doméstica, mas ainda falta dar passos gigantes para que haja de facto esta erradicação de que tanto falamos”.
Ainda assim há melhorias. A secretária de Estado para a Igualdade, Elza Pais, afirmou que a pulseira electrónica já foi aplicada a 25 suspeitos da prática de violência doméstica, 21 dos quais ainda a mantêm. Dos países europeus, só Portugal e Espanha aplicam estes dispositivos a casos de violência doméstica, especificou Elza Pais. Acrescentou que o dispositivo pode ser aplicado, mediante decisão judicial, a partir da avaliação de risco feita pelas forças de segurança.

Cantora vive sete anos de agressão

A violência doméstica atravessa os dias, as noites, as classes sociais. É um problema transversal das sociedades. Sofia [nome fictício] é uma das mais promissoras cantoras portuguesas. Uma voz serena, uma presença bonita em palco. Mas sofreu “horrores” durante sete anos às mãos do então marido.
Os primeiros sinais de violência, apareceram, quando estava já casada à alguns meses e grávida de minha filha, no início da gestação”, revelou em conversa com o Novo Impacto. Um ataque de ciúmes do agressor, revelou o " perfil oculto". Como viveu Sofia com a situação? “Inicialmente, como qualquer mulher, que inclusive tenha sido criada por pessoas idosas ( avós), reage tentando ocultar o acto, porque acha que deve manter o respeito pelo marido. E com promessas do mesmo, que jamais volta a acontecer, vive nessa ilusão. Um agressor, jamais sente remorsos ou se sente magoado por tal atitude, muito pelo contrário, sente-se mais homem e mais respeitado pela esposa”.
Durante sete anos  foi “vítima de violência física quase diariamente. Os primeiros quatro anos em segredo e os restantes ia contando a alguns amigos e familiares mais próximos. Mas, foram sete anos seguidos com agressões diárias, inclusive algumas até mesmo, nos meus locais de trabalho. Sempre fui pedindo ajuda. Mas ninguém ajudava... a  família dizia: ‘querida, é teu marido, aguenta...’. Raramente, e nos tempos de hoje, amigos e familiares não oferecem muita ajuda, a não ser psicológica”, relatou.
Apesar de toda a violência nunca existiu uma queixa formal. “Fui obrigada. Numa noite, tinha três espectáculos seguidos, uns atrás dos outros, e ele só me ia levar e buscar de uns para outros. Durante as viagens, o álcool e os ciúmes falaram mais alto. Levei sempre porrada, antes de entrar nos espectáculos e no fim de cada um. Toda essa noite, até que chegamos a casa e me tentou matar com uma faca, completamente embriagado... Fechei-me num quarto e liguei à policia da minha área de residência. Desde então, fui logo obrigada a comparecer na esquadra, médicos e etc. A GNR tomou conta da ocorrência e do que assistiram dentro de minha casa e assim, iniciou-se um processo”.

O medo continuou...

Até ao julgamento não foi fácil. “Inicialmente três dias no apartamento de meu pai que estava vazio. A GNR era constantemente solicitada, dadas as perseguições do agressor, pontapear de portas, escândalos diversos etc. Como tal, em 24 horas fui obrigada, a abandonar minha área de residência e ficar acolhida em casa de um amigo. APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vitima) na altura, estava fora de questão, pois tinha uma agenda a cumprir, e como tal, foi uma decisão muito precipitada, mas protectora aos olhos da policia,  da minha advogada. Perdi tudo, deixei de estudar, fiquei com a roupa que tinha numa mala e nada mais. Os meus filhos ficaram nos avós paternos, até eu ter condições de vida estáveis, para que estes nada sentissem, nem sofressem psicologicamente. Como a minha profissão faz com que tenha muitas ausências, eles iriam pensar que estava a trabalhar. Mais tarde, fui explicando, não as agressões, mas sim, que não estaria mais com o pápá!”.
Hoje, após o julgamento e a condenação do agressor, Sofia é uma mulher mudada. “Como mulher mudei radicalmente e, confesso, que se hoje tivesse a mesma situação, dado o constrangimento anterior evitava passar pelo mesmo.. Quem enfrenta uma primeira situação e tem coragem para levar tudo até ao fim, não sentirá essa mesma coragem numa segunda ou mais vezes. Refugia-se e oculta, não por cobardia mas sim, pelas pressões e experiências vividas. Resumindo, psicologicamente, jamais volta a ser quem era”, contou.
Apesar de tudo, Sofia deixa um concelho às mulheres que sofrem entre as paredes de uma casa: “não se iludam, a partir do momento, que companheiro ou marido, bate pela primeira vez, torna-se vício. Não vai parar de o fazer, por mais juras de amor que faça. Termina aí o respeito, de ambas as partes. Um factor muito importante é a ajuda dos amigos/familiares, pelo menos no acolhimento e que as mulheres sejam independentes. Quando não têm é mais complicado em s.o.s existe a APAV mas ficam de 3 a 6 meses incontactavéis, logo deixam de ter vida pessoal. Procurem ajuda em psicólogos, são muito importantes nessa altura.  Não se calem e sigam em frente. Façam justiça! Não fechem os corações e sigam em frente. Lutem pela felicidade”, concluiu Sofia.

Força para sair

Aida e Sofia fazem parte das foi alvo de violência física. Porém, os actos não se ficam por aqui. A violência emocional já atingiu 20 por cento dos jovens portugueses. Segundo afirma o psicólogo Nélson Rodrigues “ela pode ser mais dolorosa do que a violência física porque destrói a auto-estima dos agredidos tornando-os mais vulneráveis face ao agressor”. Joana, 18 anos, “sentiu na pele” o quanto as palavras podem ser mais fortes que os actos: “ O César estava constantemente a pôr-me defeitos. Magoava-me muito. Chamava-me ‘burra, estúpida, inútil e anoréctica’, mas dizia ‘apesar de seres assim amo-te tal como és’ e acrescentava ‘se não me tiveres a mim, não terás mais ninguém porque ninguém gosta de ti’. Eu acreditava. Falava mal de todos os meus amigos e obrigou-me a afastar-me de todos eles dizendo que eram falsos e que só falavam comigo para me gozarem depois. Quando me apanhava a sair da faculdade com alguém chamava-me nomes horríveis. Chamava-me ‘tudo menos mãe’. Falei com a minha mãe e fez-me prometer que iria deixá-lo mas não queria porque pensava que só ele gostava de mim, apesar de ser uma ‘inútil’. Acabei por ter acompanhamento psicológico durante dois anos e consegui livrar-me dele e de todos os complexos que criou em mim. Hoje, sei que sou uma rapariga inteligente, tenho muitos amigos e um namorado que gosta, verdadeiramente, de mim”.

Planos Municipais de Violência Doméstica

Fátima Lopes, Directora do Centro Distrital de Segurança Social, manifesta preocupação pelos dados relativos ao homicídio e tentativas de homicídio de mulheres. “O ano de 2010 tem este sinal de que há o conhecimento agravado desta situação em relação aos anos anteriores. Isso preocupa-nos porque tínhamos uma diminuição, mas agora há um aumento das denúncias, das mortes e tentativas de homicídio”, disse, acrescentando: “Pelos dados da UMAR e da PJ foram assassinadas, entre 2004 e 2010, 24 mulheres. Morrer é duro, é algo que faz parte das nossas vidas, mas não ser assassinada. E isto não é admissível. Temos uma óptima legislação. Não pedimos mais nada do que a aplicação do que existe”.
Fátima Lopes reforçou, ainda, a necessidade da criação dos Planos Municipais de Violência Doméstica. “Estes planos farão esta rede de monitorização da problemática e criação de estruturas para apoio”.
Os inquéritos-crime dos processos de violência doméstica duraram em média 12 meses, “um tempo muito longo que significa, em muitos casos, novas agressões”, queixou-se a coordenadora do projecto Rebeca, Rita Braga da Cruz, num estudo sobre 19 situações deste tipo levados à barra judicial.
Elza Pais,  secretária de Estado para a Igualdade concorda, mas sublinha que a Justiça “precisa de um tempo que não se adequa às necessidades do nosso tempo real. Gostaríamos muito que a Justiça pudesse decidir de um momento para o outro, não é assim, nem Portugal nem no resto do mundo”, acrescentou.
Até lá, resta esperar sensatez, responsabilidade e respeito pelos direitos humanos, porque embora as pessoas se amem, não são donas do parceiro e há que relembrar a velha máxima: “A nossa liberdade termina quando começa a do próximo”. 
Paulo Jorge Oliveira 

Comentários

  1. Muito bem feita esta reportagem, este testo...clarifica bem a miséria e a violência que muitas mulheres sofrem à boca calada (que é a solução que muitas vezes encontram para os seu caso)....Ninguém consegue garantir a segurança de ninguém!!!

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