Um nada é um pouco que é tudo por Francisco Godinho

Crónica: Mais ninguém ouve o mar

As noites são infinitas quando chove, coxeando gotas parapeito abaixo, alguém que se desfaz no beiral igualmente, escoando pela caleira, somos medo e lágrimas num reflexo e reparem bem como nada na vida volta de verdade, corta o peito de serrilha em riste, quando muito uma voz que rapidamente se esfuma.  Não chores, não te apercebas de mim pela voz, mas antes pela sombra da minha ausência que sei que escutas na torneira do sangue, como sei que me sentes a respirar na buganvília que engole a vivenda antiga, às vezes sinto, de noite, que um relógio sem pulso dentro, (imaginem vocês um relógio sem pulso dentro), cavalga minutos por mim acima sem que eu respire, sem que eu me aperceba porquê, eu que me esforço por não existir, penso, por vezes, que o umbigo do silêncio está atrás de uma porta fechada em nós, talvez em criança, talvez mais tarde. 
"Não me impeçam de fechar a porta com a ponta dos dedos" 

E há momentos em que quase que sinto a porta entreaberta, quase que compreendo que não nos alimentamos de nada em concreto, alimentamo-nos de mais fome e o resto vai-se equilibrando, com sorte não cai e amanhã acorda-se com insónias encovadas em redor dos olhos, depois da noite nos percorrer saímos pouco ilesos dela, saímos despedindo-nos das ausências opacas em desvirtuados gestos de perdão ou adeus, como se distinguem ambos, prematuras mãos de viúva em eternas saliências de veias, não se esqueçam que não é nenhum gesto que vos dirá que alguém se foi, é de costas e para dentro que se diz adeus, numa vénia respeitosa de chapéu tirado, num inclinado aceno de cabeça que, com sorte, ninguém verá, com sorte, se nós não dermos com a lembrança de alguém, longe, numa contemplação muda de memórias, rostos, cheiros que se insinuam lentamente, talvez por brilhos insuspeitados em noites opacas, o que é que o nosso peito libertará quando o abrirem?
(Não me impeçam de desaparecer, não me impeçam de fechar a porta com a ponta dos dedos e esperar que, para meu espanto, a empurrem, não me impeçam que me suma no silêncio das frestas das rochas que o mar devora em deglutições eternas, o que me apetecia era que aqui não houvesse palavra alguma, com os anos calo-me, vou existindo em surdina, em notas mortas que nem ecoam, o que me apetecia era desaparecer). 
Ainda hoje, apesar de tu e eu distantes, dá-me a impressão de respirares na cadência das ondas de Janeiro no Castelo do Queijo, vaga após vaga as ondas que se calam e se afastam em passos pequenos abandonando a costa e tu respirando abandonando o mundo que existe depois de anoitecer, impressionantemente enorme, numa imponência de gigante que galga o nosso interior segredando-nos os nossos medos, quem nos deixa preenche-nos ao crepúsculo sem que pensemos sequer, surgem, talvez do escuro, visto que que quase não somos depois do sol se pôr, vamos gatinhando horas até que amanheça, não lá fora mas dentro de nós, vão sobrando as sombras do dia, que mistério é dizer adeus.  Nunca entendi o que possa ser adeus, talvez o brilho dos insetos em torno dos lampiões seja adeus, desaparecem num instante que nunca existe, pisca-se os olhos e adeus, mais ou menos manco porque a saudade pesa nas pernas também, não se iludam a seu respeito, um adeus talvez flutue onde a sua ausência nos pesa em durezas de âncora, nas alturas em que nos morre alguém o tempo pertence-nos e pertence também a qualquer outra coisa que anda em torno mas não tem nome. 
As pálpebras pesam mornas em cima do que gostaríamos que fosse uma lágrima, apenas uma lágrima e, para nosso espanto, é uma tentativa, mas a vida é um erro suspenso que, com sorte, redimimos nas beirinhas, em esboços de margem que talvez sobrevivam,
(Quando vivem, as pessoas que amamos ocupam em nós um espaço de proporções incalculáveis, depois de morrerem descobrimos que ocupam territórios desconhecidos, tempos inusitados que o relógio não marca, datas vagas que a pouco e pouco se tornam nítidas e temos, de súbito, cinco anos e a mão dada em alguém). 
A infância é um truque velhaco, dá-se um passo na sua direcção e ela recua dois, é uma pintura imensa de detalhes que se esvaem na distância, um colo que se ausentou, uma mão no ombro a impedir que a vida nos surja como ela é, a voz não torna, espero-te mesmo sabendo que não mais virás, espero-te como as viúvas antiquíssimas aguardam em parapeitos anacrónicos, decrépitos e branqueados pelos roçar dos anos, talvez eu em miúdo aguarde também, minúsculo, que me levem para o parapeito da janela do meu quarto antigo, guiado pela mão de uma voz que, em matéria de carinhos, a mão de uma voz aquece a raiz do peito e não tarda nada, se não me fecham as persianas, garanto-vos que começará a chover.

Texto e Fotografia 
Francisco Godinho 

Biografia: 
Nascido na cidade do Porto a 11 de junho de 1995. As ruas, os habitantes e a
noite no Porto servem a preferência como temas de escrita. Licenciado em direito pela
Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Autor de “Sentido dos Dias”, Chiado
Books, 2019. Cronista na Revista Rua desde Julho de 2019. Cronista na Revista Devaneio
desde Março de 2021. Cronista na ADN-Agência de Notícias desde Janeiro de 2024. Prosas traduzidas e publicadas na revista italiana 22Pensieri.

Ficha técnica das obras:
- Co-autor de “Declaração Universal dos Direitos Humanos | Convenção Europeia
dos Direitos Humanos. Anotações pelos estudantes da Faculdade de Direito da
Universidade do Porto”, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2019
- Autor de “Sentido dos Dias”, Chiado Books, 2019
- Co-autor de Entre o Sono e o Sonho - Antologia de Poesia Portuguesa
Contemporânea - Vol.XII, Chiado Books, 2020

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