Rio Frio, freguesia de Pinhal Novo - Reportagem de Arquivo

Futuro incerto em Rio Frio


A herdade de Rio Frio ainda mexe. Mas pouco, se comparada com o século passado, em que milhares de pessoas chegavam e partiam vindos das Beiras, do Algarve e Alentejo. A labuta era diária e o esforço muito; o dinheiro que entrava nos bolsos, esse, era pouco. Ainda assim, eram tempos melhores, dizem os que se mantém no monte – as casas e os armazéns caídos; os edifícios que foram noutros tempos a escola, a padaria, a barbearia, fechados, tornam difícil de imaginar: mas esta já foi uma das maiores herdades do país. Hoje, resta a incerteza: a exploração suinícola fechou, mandando algumas dezenas de trabalhadores para a rua; poucos conhecem os novos proprietários e o que pretendem fazer com Rio Frio.
Pelas ruas, outrora cheias, corre o rumor de que os moradores poderão ser despejados. Quem lá viveu quase toda uma vida, diz que não sai. É o caso de António Fernandes, 73 anos. Chegou a Rio Frio, pela primeira vez, em 1945. No início, vinha por uns meses e voltava a Viseu. Depois, aconteceu-lhe o mesmo que a outros trabalhadores: apaixonou-se por uma rapariga da terra e casou-se. “Foi o meu sogro que construiu as casas e agora querem que saia? Eu não vou”, garante. António sente que ganhou direito à casa: “já cá estava quando chegaram”, diz, referindo-se aos actuais donos da herdade e, também, aos antigos.
António fez quase tudo nas terras da propriedade: trabalhou com a enxada, nos campos de arroz, foi empregado de mesa no palácio, empregado de escritório e “chauffer dos patrões”. Hoje, já reformado, passa os dias no Grupo Desportivo de Rio Frio. É lá que está agora, sentado junto do irmão, do sobrinho e de outros companheiros de memórias. Recordam aqueles primeiros “tempos de escravidão”: chegavam no comboio ou nas camionetas “para cumprir contratos de trabalho de sol a sol”, conta.
Quando as críticas de António começam, os que o acompanhavam levantam-se dos bancos de tijoleira à porta da sociedade e entram. Em Rio Frio muitos falam, mas nem tantos querem dar o nome. Uns, dizem, porque não são dali; outros porque são muito novos para se lembrarem; outros, ainda, sem justificação. O futuro é incerto e isso sente-se nas gentes que fizeram da herdade a sua vida. Os companheiros de banco de António Fernandes hão-de regressar mais tarde, com uma cerveja na mão e o bolso cheio de histórias que ficam por revelar. “É melhor ser o poeta a falar”, diz o seu sobrinho. Tem razão: como António Fernandes trabalhou no campo e na casa dos patrões, fala à vontade sobre os dois lados da herdade.

Fundador: José Maria dos Santos

Até 1952/53, “dormíamos nos quartéis numa tarimba com palha de arroz e uma manta que servia para tapar a palha e nos tapar também”, recorda. Eram quase 16 mil hectares, onde se produziam arroz, vinha, cortiça e se criava gado. Aos trabalhadores que já se tinham instalado ali, desde finais do século XIX, juntavam-se sazonalmente homens vindos do norte, das beiras e do Algarve. “De Coimbra, Mira, Leiria, para limpar as máquinas, vinham os bimbos”. António era um “ratinho”, chegado de Viseu. “Recebia 90 escudos por mês e passava fome de cão. O comer que me davam era 50 vezes pior do que aquele que eu dava aos meus cães”, conta.

Depois, a sua vida melhorou: “cresci e disse que não queria mais pegar na enxada”. Foi trabalhar directamente com os patrões. Durante muitos anos, conduziu os Lupi, descendentes de José Maria dos Santos, importante latifundiário e influente homem do reino. Foi ele que introduziu novas técnicas – como maquinaria e adubos químicos, nas terras herdadas pela sua mulher. Foi também quem mandou plantar a maior vinha do mundo, 16 mil hectares. Ficou para a história.    
Mas nem os seus herdeiros conseguiram fazer frente ao 25 de Abril. Este foi o acontecimento que marcou o definhar da propriedade, considera António Fernandes. Desde então, as actividades foram-se perdendo. “Era um luxo”, exclama. “Havia quem dissesse que esta era uma das maiores vilas do país. Hoje somos um bando de abandonados”, queixa-se o antigo motorista, agora reformado. Não é preciso ir muito além do grupo desportivo para o perceber. Na rua da padaria – que já não existe – duas casas desabaram. As telhas, ainda ali estão, misturadas com as vigas que cederam e o entulho. Os mais antigos falam no barbeiro, na mercearia, na serração, mas nenhuma placa faz adivinhar onde eram.  

“Aqui não há futuro”

Maria Luísa, 76 anos, e a irmã Quitéria, de 75, que está “só de visita”, passam junto à escola primária, a caminho na avenida principal. Os olhos de Maria Luísa não escondem a mágoa quando fala de Rio Frio noutros tempos. “Isto era muito lindo”, diz, “Tinha mercearia, serração, adega cooperativa, o sítio para cozer o pão, onde a minha mãe ia muitas vezes. Mas acabaram com tudo”. Quitéria também já morou aqui – “depois casei e fui-me embora”.
Vera Lúcia, 28, está junto a uma velha fonte, a estender a roupa. Tal como Quitéria, casou-se e saiu de Rio Frio. Está a passar uns dias em casa dos pais com os dois filhos. O resto da vida, fá-la do outro lado do Tejo, em São Pedro do Estoril. “Fui-me embora porque aqui não há futuro”, confessa. A sua filha mais velha, Marta, brinca com os amigos junto à antiga escola primária, fechada há pelo menos seis anos. Vera Lúcia ainda se lembra do edifício cheio de crianças. Agora, está fechado. As tintas das paredes há muito começaram a descascar e as ervas daninhas a sobrepor-se ao trabalho na calçada.

Apesar da escola encerrada, são, ainda, os mais novos quem anima os dias em Rio Frio. Especialmente, agora, durante as férias. Além de Marta e dos amigos (o mais pequeno, de 3, 4 anos: “gosto muito de viver aqui, porque brincamos muito”, diz), vêem-se muitas crianças e adolescentes de toalha ao pescoço – elas com o biquíni vestido, eles em tronco nu. “Vamos para a piscina” ao pé da sociedade desportiva, explica um grupo. Trazidos pelo vento abafado, chegam os risos e gritos dos que já lá estão. “Existem aqui mais jovens do que se pensa”, desabafa uma rapariga, sempre atenta ao telemóvel.
O maior problema é a falta de transportes. Sobretudo no verão: “durante a escola, temos o autocarro que nos leva”, mas agora “temos que pedir aos nossos pais”. Esse é um problema que se estende aos mais velhos, recordou-nos há pouco, António Fernandes. A camioneta passa três vezes ao dia: às 7h20 da manhã, às duas da tarde, e próximo das 8 da noite. De resto, “os velhinhos que não têm transporte pedem aos que têm”, assegurou António, mostrando a chave do seu carro. “Desenrascam-se a pagar as contas e receber reformas quando o carteiro cá vem”.
Pior, indica Cristina, é quando querem ir ao centro de saúde. “A camioneta que passa aqui, já não pára ao pé do posto”. A solução é ir a pé ou apanhar um outro autocarro. O antigo hospital de Rio Frio foi desactivado e as suas instalações estão agora ocupadas pelo Centro de Ocupação Infantil, COI. Três vezes por semana, às segundas, quartas e sextas, uma enfermeira dá assistência na herdade.  

Problemas com furo de água

Cristina, 47 anos, está reformada. Quando os vizinhos do Bairro Novo, Maria Manuela, 64, e Francisco Fernandes, 71, se sentam no muro de um canteiro com o neto ainda bebé, aproxima-se. Trabalharam os três juntos. Francisco e Cristina são mais dois dos “ratinhos” que ainda habitam em Rio Frio. Partiram de Viseu há muitas décadas, quando na herdade “se fazia melhor vida, do que se faz hoje”, confessa Francisco. “Ninguém comprava nada, vendia-se tudo aqui dentro”. Agora precisam de ir até uma das localidades vizinhas para encontrar um supermercado – e água.

Por se tratar de uma propriedade privada, a herdade não dispõe de infra-estruturas públicas de abastecimento de água, mas antes de um furo de água. Em Junho, os residentes foram avisados de que a água estava imprópria para consumo. O problema foi detectado depois de algumas pessoas terem dado entrada nos hospitais da região com infecções intestinais. Na última reunião de câmara, a 18 de Julho, José Charneira assegurou que as primeiras análises feitas à água “deram-na como boa”. Ainda assim, “há outros problemas difíceis de detectar”, disse o vereador, pelo que “pedimos que fizessem análises [para detectar] os pesticidas”.
Cristina optou por seguir o conselho e só tem bebido água engarrafada. O mesmo com a família de Manuela e Francisco (os filhos e netos do casal moram todos no Bairro Novo). Já os dois confessam que continuam a beber do furo: “não sabemos há quantos anos bebemos água assim”, diz Manuela, “e se nunca fez mal…”.

Outro ritmo…

Descendo a estrada de terra batida desde o Bairro Novo, chega-se à rua das oficinas, onde os tractores já estão a ser arrumados. Às 17 horas o movimento cessa. O silêncio é cortado apenas pelos gritos dos jovens na piscina. As casas em frente aos barracões estão pintadas à boa maneira portuguesa, com barras amarelas ou cinzentas. Virando à esquerda, para a rua do esmagador, restam as paredes dos armazéns. Os telhados desabaram. Entre dois edifícios, um camião cisterna vai ganhando ferrugem. O mesmo com os instrumentos de lavra, antes usados nas máquinas. Em frente, o “palácio”, como chamam à grande casa, está tratado e guardado por um cão. Seguindo a estrada das palmeiras, as ervas vão crescendo. À porta do fim-de-semana, Rio Frio quase que parou. Os cavalos pastam. Passa um carro, depois outro. Uma senhora deixa o monte, a pé. Aqueles eram caminhos pisados por centenas diariamente. Rio Frio mudou. Mexe, é verdade. Mas produz muito menos. Ainda mais agora, que a suinicultura fechou de vez.        


Paulo Jorge Oliveira 

Comentários