Homem da Moita quer deixar de pagar impostos

Cita Constituição para deixar de pagar impostos

Alcides Santos, um gestor de sistemas informáticos da Moita, que está no desemprego há dois anos, entregou ontem na Provedoria da Justiça uma carta onde explica o seguinte: vai deixar de pagar impostos. Nem IMI, pela casa onde habita, nem IRS e IVA, sobre um biscate que fez há uns meses. Invoca o artigo 21 da Constituição da República Portuguesa – o artigo que define o Direito de Resistência – para defender a legitimidade da sua decisão. Alega que acima dos seus deveres como contribuinte está o dever de não deixar os filhos passar fome. Quer que o Provedor de Justiça fale publicamente do caso. Terá sucesso? As opiniões dividem-se.

Alcides alega sobrevivência para deixar de pagar impostos 

O que pode ser abrangido pelo Direito de Resistência estipulado na Constituição é algo que, como é norma em matérias legais, divide os juristas. Como os impostos contestados por Alcides Santos foram aprovados pela Assembleia da República, e não existindo até agora qualquer parecer em contrário do Tribunal Constitucional, não se pode entender que o seu pagamento seja “uma ordem que ofenda os direitos dos indivíduos, nem uma força que deva ser repelida”, defende o constitucionalista Tiago Duarte, para quem esta iniciativa está assim “completamente à margem” do que é evocado no artigo 21 da Constituição.
“E o que pode fazer uma pessoa que é taxada por um imposto que não pode pagar, que é obrigada a cumprir o que não pode cumprir, senão resistir?”, contrapõe o juiz jubilado do Supremo Tribunal de Justiça, António Colaço.
O juiz entende que esta é uma opção constitucional para um “desempregado que está no limiar da pobreza, que tem pessoas a cargo, e que já não pode fazer nada mais para inverter a situação de penúria em que se encontra”.

“Não quero que os meus filhos passem fome”
Alcides Santos escreve o seguinte no texto que fez chegar ao provedor Alfredo José de Sousa: “Existe uma inegável hierarquia de valores que exige que eu faça o necessário para garantir a sobrevivência física dos meus filhos, dos meus pais e de mim próprio (o que se aplica a qualquer pessoa que se encontre na minha situação), a qual estará sempre acima das obrigações fiscais e, mais do que isso, encontra-se salvaguardada pelo artigo 21 da Constituição”.
Este desempregado vive na Moita, com a mulher e os dois filhos, numa casa que está a pagar ao banco: 400 euros por mês. O prazo do subsídio de 1150 euros que recebia acabou no mês passado. Este mês, diz, a família tem 600 euros para sobreviver: o ordenado da mulher, que trabalha num call center.
Desse bolo, 400 vão para pagar a casa e sobram 200 para tudo o resto. Com um filho de 15 anos, a frequentar o ensino secundário, e outro de 23, que está na faculdade, Alcides deu consigo, há duas semanas, a olhar para as contas. Já usa o cartão de crédito para pagar coisas básicas.
“Estou a viver acima das minhas possibilidades porque não quero que os meus filhos passem fome”, disse Alcides ao jornal Público. O informático que, no seu último emprego, ganhava 2200 euros mensais. Há uns meses, fez “um biscate” e passou o respectivo recibo: cerca de 750 euros. Agora tem que pagar 158 euros de IVA e 79 euros de IRS. Foi para esse recibo que, há duas semanas, começou a olhar.
Sentado num banco do jardim público que fica em frente do prédio onde vive, continua: “Quando estamos no desemprego acontece uma coisa: temos muito tempo”, inclusivamente para ler a Constituição de uma ponta à outra. “Comecei a olhar para os papéis e a pensar: eu não consigo pagar isto. Bom... a minha formação é Matemática. O meu trabalho é arranjar solução para os problemas.” Voltou a ler a Constituição. 

Eu queria cumprir...
“O Governo não está a cumprir com o artigo que assegura o Direito ao Trabalho” e que incumbe o Estado de executar políticas de pleno emprego, argumenta. “Eu sou o produto dessa decisão do Governo. Por isso não consigo cumprir com as minhas obrigações. Sempre cumpri, e queria cumprir, mas agora tenho que optar: alimentar os meus filhos ou cumprir.” Para já, este homem que já esteve associado a organizações como o Movimento dos Sem Emprego gostaria que o provedor de Justiça se pronunciasse sobre a sua exposição. O passo que se segue pode ser informar o Fisco da razão pela qual não vai pagar. Para além disso, admite ter de informar outras entidades da mesma decisão: companhia da água, da luz, do gás. Porque acredita que, a manter-se na situação em que está, acabará por não conseguir liquidar essas facturas.

O que é o Direito de Resistência
O Direito de Resistência em matéria fiscal foi alvo de um acórdão aprovado em 2003, por unanimidade, pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA) e tem sido retomado em outras deliberações.
A propósito de uma taxa que a Câmara de Lisboa pretendia cobrar a uma empresa por um acto que, entretanto, fora anulado, o STA lembrou naquele seu acórdão que o “privilégio da execução prévia” (execução de uma dívida antes da ordem do tribunal) não se aplica aos “actos de liquidação de tributos”. Mas, nestes casos, defendeu, a oposição dos contribuintes deve ser feita, precisamente, através do recurso aos tribunais, sendo este considerado “o meio processual adequado para a concretização do direito de resistência defensiva”.
Em Portugal, foi a invocação do direito de resistência, na sua interpretação mais lata, “que legitimou juridicamente a Restauração do 1.º de Dezembro de 1640”, sustenta Pedro Calafate, professor de Filosofia na Universidade de Lisboa. No pensamento dos Conjurados imperava a doutrina escolástica “segundo a qual Deus é a origem do poder enquanto autor da natureza social do homem”.
“Mas trata-se de uma origem em abstracto, porque, em concreto, quem concede ou transfere o poder para os reis é a comunidade”, continua. Esta transferência é feita “sob condição de respeito pela justiça e pelo direito fundamental de conservação da vida”. E, tendo por base esta premissa, “a comunidade ou os indivíduos directamente ameaçados podem resistir e destituir os governantes”. Ou seja, no século XVII o direito de resistência era entendido como uma reacção aos tiranos, categoria onde entrava também quem não governasse para o bem comum.

Agência de Notícias 

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