Ela...

Pena Solta por Lia Santos

Ela...

Companheira do sol e das raízes... Chegou à  grande cidade...numa mão levava o seu lenço, na outra o medo... o resto era a história antiga da minha solidão e da minha esperança a escola que me deram não era um desses poéticos e míticos lugares, brancos e cheios de flores com que sonhamos depois de ler aqueles velhos contos de fadas... era sim um velho primeiro andar, de uma rua suja de sal, onde era presente a humidade.



Mas estava repleta de educação e bons valores...não tinha nada de comum com esses meninos de bata branca que me acompanharam no início da chamada educação básica, normal dos primeiros dias de aulas e que as mãezinhas nos entregam como se fossemos de porcelana. Lembro-me desse nosso primeiro encontro, tão comovidamente, que receio não encontrar a palavra exacta para o esboçar. Este era o meu reino e aqui tive o primeiro contacto com a palavra sentimento fora do seio materno e sorria...e  se tiver sarilhos aiai mas hei-de passa-los, se quiser sobreviver. Ainda me lembro da primeira vez que desci umas escadas no fim eu fiquei ali face à  nova aventura em silêncio...silêncio que me envolveu expectante. Esculpido em vento e mar os sentimentos a seu tempo vinham dos barcos ancorados no cais, do bairro da lata, de sabe-Deus-donde...
Traziam nas mãos, em vez de malas e livros, contos e ensinamentos...mas também folhas de plátano e ramos de amendoeira florida. O Outono dourava-me os cabelos...tinha em mim sementes vivas da mais autêntica liberdade e não sabia nada de preconceitos, nem de palavras, nem de coisa nenhuma mas a fome de ternura era em mim como o sol, a chuva e o desconforto. E com ramos pequenos atirava para o rio nas tardes em que interiorizava, estabeleci desde aquela hora um entendimento acido e discreto. E foi assim que ficamos solidários e Amigos-Para-Sempre... eu e o meu pensamento...aprendi então a Verdade uma palavra real. E a lealdade me consumiu...depois muitos sonhos vieram a partir daí, desejava conhecer a  Europa, Africa as ilhas perdidas do Atlântico.
Mas ali, na escola húmida e despojada, não me aconteceu mais que o milagre do mapa mundo... Tenho-me perguntado muitas vezes porque. E cada vez vou tendo mais a certeza que o excesso de conforto destrói o Rosto Iluminado do Homem. eu não tinha, não esperava, nem pedia nada...por isso, estava disponível para tudo. os passeios que dei, as noticias que aprendi a comentar, os poemas que li, a vida que conscientemente ajudei a desvendar na minha cabeça, foram a minha primeira riqueza e fizeram crescer em mim  uma branca flor de fraterna alegria. Foi como se um vento de loucura me tivesse perturbado, e o mundo estivesse suspenso do que fizesse. e so me apetecia pintar nas paredes sujas da rua o sol e pássaros verdes. E nos buracos dos tinteiros partidos fazer nasceram flores.

Todas as manhas quando abria a janela a Terra quente e o cheiro a chuva apoderavam-se de mim... a alegria das coisas contagiavam-me pela  indiferença e as pessoas, muitas, muitas... poetas, professores, pintores, operários, sentia que junto deles as manhãs eram mais claras e a fome mais terrível e desejava nunca crescer. hoje, alguns desses desejos mudaram porque sei que há muitos seres honestos, ardinas apressados, vendedores ambulantes e outros serão marinheiros, outros, sei lá o que são! Sei lá o que a vida fez deles...são diferentes...mas também eu me tornei diferente. Esta página é uma homenagem ao conhecimento. Guardo dia após dia os anos em que tentei não me perder pelos novos caminhos que era obrigada a pisar como um testemunho...oxalá que alguns de vós possam ler estas linhas e reencontrar-se nelas...não era génio nem poeta, nem menina-prodígio, mas simplesmente era eu e cada vez que mergulhava na aventura da palavra com uma dor e uma lucidez já adulta o medo surgia...e era ele que me confortava, soberana menina/senhora vai ficar tudo certo...mais tarde ensinaram-me que, quando se é humilhado naquilo que em não senão claridade e certeza, aprende-se mais depressa o sentido exacto da liberdade, da paz, do ódio, do amor e do ridículo do quotidiano.
Eles revelaram-me que a mística transforma as crianças mais que os adultos, em anjos implacáveis de lucidez, e que a fome os ateia e lhes faz crescer nos olhos, brancas e terríveis asas de sonho ou destruição. E nestes anjos de fogo, uma voz oculta e violenta em que por vezes é preciso urgentemente meditarmos. Aprendi com o tempo que toda a terra que me é deitada por cima só me ajuda a chegar ao cimo de cada buraco que caio com os meus erros de forma a aprender a desviar-me deles e poder tapa-los para que atrás de mim não caia mais ninguém...dei conta de mim frente a um espelho e por mais palavras que tente puxar ou identificar um rosto não obtinha nenhuma imagem na mente, por talvez ser diferente de tudo e ao mesmo tempo ter os mesmos gostos iguais a todos...e a razão talvez seja ainda guardar aquele sonho de menina que comecei...guardo em mim o conhecimento de varias vidas mas mantenho real o meu sem deixar que os mais obscuros pensamentos o apaguem.
Ela me ensinou a ser forte, real, sincera, terna e eterna no meu interior...ela me ensinou a ser diferente e mostrou-me que a mais pequena diferença muda o destino. Ela me contou um segredo quando nasci e ele ficara para sempre guardado em mim até esquece-lo... Ela pode denunciar, construir ou semear... a alegria, a vergonha ou o nada...ela pode ser a semente da esperança, da paz entre os homens...ela pode ser o ódio...ela pode ser o Amor...ela pode ser tudo...e o meu sonho é um dia poder ser o espelho dela...ela é onde dois se tornam num só...


Lia Santos
Lisboa 

(Lia Santos escreve todas as quartas-feiras a rubrica Pena Solta, pensamentos da alma)  


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