ADN do Amor - Capitulo I

Um bilhete para o amor
Esta é a semana do amor no mundo e no ADN. O São Valentim festeja-se amanhã e, até domingo, o ADN irá fechar o dia com histórias de Amor. Umas impossíveis, outras possíveis. Outras ainda diferentes, muito diferentes. Estórias e histórias que se cruzam nas nossas vidas como os amores. Começamos hoje com “um bilhete para o amor”. A história de Leonilde e Vitor, de um bilhete esquecido num bolso que trouxe mil e uma memórias e reflexões. Amanhã há um amor virgem!



Leonilde guardava sempre todos os bilhetes, bilhetinhos, panfletos, flores, tudo aquilo que queria imortalizar materialmente, porque a memória às vezes é muito traiçoeira. Por isso, sempre achava por bem guardar o que mais tarde não podia recordar e, pelo menos, então teria uma ajudazinha, não é?
Claro que há uns mais importantes do que outros quando se lançou com afinco nessa recolha não era capaz de discernir nada - caixas de bombons vazias, latas de chantilly usadas, balões, colheres, contas de restaurantes, cartões de discotecas, pauzinhos de mexer a bebida quando saíam à noite.
Mas o mais importante sempre foram os bilhetes, esses sim com um local minuciosamente escolhido que logo à partida os distinguia de quaisquer outros. Para o efeito, comprou um baú de madeira escura antigo, cuja dimensão lhe pareceu apropriada e disposta a durar a eternidade. Mas não, logo ficou a abarrotar e os que entretanto chegavam tinham lugar incerto. Comprou mais caixas que, inexplicavelmente, logo ficaram a arrebentar pelas costuras pelo que conclui que nada há que consiga aguentar por mais de um ano todos dos bilhetes que marcam o seu percurso amoroso.
Às vezes teve momentos de nostalgia em que pegava nas caixas e no baú e ia olhando para os bilhetinhos, tão pacientemente ordenados, deixando-se transportar para outros tempos, para esses momentos singulares marcados para sempre com a prova irrefutável de que, de facto, aconteceram.
Na semana passada deu-lhe para vestir umas calças que já não usava há para aí uns bons pares de anos - a mania de armazenamento não se confina apenas aos bilhetinhos... que continha no bolso de trás um bilhete que fez Leonilde puxar pela memória e recuar no tempo para contextualizá-lo. Não foi difícil, embora a lembrança que ele lhe trazia não fosse doce como a ansiedade que antes de abri-lo desejava, mas bastante amarga.
Um bilhete do barco do Tejo com destino a Lisboa vindo do Barreiro onde vivia o Vítor, comprado sob a pressão dos nervos e das lágrimas que caíam sem licença, depois de uma fuga orgulhosa às onze da noite do leito já pronto. A discussão começou sem razão, como acontece quase sempre, e prolongou-se ainda mais vazia de razões até se transformar em críticas e acusações de parte a parte, completamente infundadas. Leonilde sentiu-se magoada e não esperou que tudo ficasse bem e esquecido entre os corpos que se iriam aquecer por entre os lençóis quentes.
Irreflectidamente chamou um táxi. Vítor olhava-a impávido mas não sereno, pediu para não o fazer que não iria atrás dela e se iria arrepender se lhe acontecesse alguma coisa. Teimosa, nem esperou que o táxi apitasse, deslizou pelas escadas e entrou no carro sem olhar para trás. Ia dormir sozinha. Estava tanto frio... Quando chegou ao lado de lá do Tejo já tinha tido tempo e espaço para reflectir na sua atitude tão dramática e drástica. Ficou triste por o Vítor não ter vindo atrás dela, nem por não tentar impedir a sua ausência nocturna para lhe aquecer os pés e fazer coceguinhas na cabeça. Bem feita para ti que ias dormir pior, foi o que pensou Leonilde.
Só não se lembrava onde tinha guardado o bilhete de volta, apanhou de seguida o barco com o olhar interrogativo dos homens e quando chegou a casa, estava o Vítor a aquecer duas canequinhas de chá preto. 
-"Sabias que eu ia voltar, convencido”?, perguntou ela.
-“Voltar, mas tu chegaste mesmo a ir, amor?", respondeu ele.
O chá ficou esquecido na cafeteira, onde a discussão se afogou, e correram para a cama onde adormeceram até todo o episódio, que hoje os faz rir a bandeiras despregadas, acabasse por passar para o regime do esquecimento do dia que amanheceu azul e sem nuvens.
O outro bilhete já estava, afinal, na caixinha, juntou-os com um clipe e o Vítor tinha acrescentado uma notinha: 
"quando não eras capaz de enfrentar discussões, engolias argumentos e calavas-te, fazias coisas destas. Nunca mais vou discutir contigo amor".


Paulo Jorge Oliveira 


Nota: Texto escrito em português antes do acordo ortográfico

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