Ministério Público investiga Misericórdia de Setúbal

Instituição suspeita de desviar meio milhão de euros

O Ministério Público está a investigar as contas da Santa Casa da Misericórdia de Setúbal. Em causa estão alegados desvios de despesas não orçamentadas entre 2008 e 2012, cujo montante poderá ascender a meio milhão de euros. O provedor Cardoso Ferreira nega "quaisquer irregularidades" nas contas. A Santa Casa, afirma o provedor, tem "técnico oficial de contas, contas aprovadas em Assembleia Geral, e a Segurança Social vê os números à lupa". Quanto ao milhão de euros de dívida à empresa espanhola Ser Union, que forneceu as refeições até 1 de Março de 2013, o provedor diz que "a dívida está a ser paga e será saldada a 30 de Junho de 2017". António Gomes, ex-gestor da Ser Union, acusa a Misericórdia de "cortar um prato" ao jantar para reduzir despesa. O provedor nega: "Até 2013, o peixe que servia não tinha qualidade, os utentes não comiam, ia para o lixo, e reforçámos a sopa". 
Santa Casa da Misericórdia acusada de dar sopas e sandes ao jantar 

O Ministério Público (MP) está a investigar alegadas irregularidades nas contas da Misericórdia de Setúbal, mas o provedor, Cardoso Ferreira, garante que desconhece qualquer inquérito em curso e diz-se disponível para prestar todos os esclarecimentos. 
O inquérito do MP está em segredo de justiça, mas fontes da Misericórdia de Setúbal adiantaram à Lusa que está em causa uma suspeita de utilização indevida de centenas de milhares de euros da instituição.
A polémica na Misericórdia de Setúbal "rebentou" dias antes das eleições [realizaram-se a 26 de Novembro], em que o atual provedor se recandidata a um quinto mandato consecutivo, tendo como adversário o antigo vice-provedor, Nuno Carvalho, eleito em 2012 (na lista de Cardoso Ferreira), mas que se demitiu em Fevereiro de 2014.
Em declarações à Lusa, o empresário Nuno Carvalho, atual presidente da Comissão Política Concelhia do PSD de Setúbal, afirma que, enquanto vice-provedor, procurou tornar a gestão da Misericórdia mais transparente e eficiente, acrescentando que se demitiu quando percebeu que não conseguia alterar a situação.
Nuno Carvalho salientou ainda que, durante muito tempo, nem ele nem os outros membros da Mesa Administrativa tiveram acesso a elementos contabilísticos fundamentais, incluindo os balancetes, acrescentando que, quando finalmente lhe foram disponibilizados esses documentos, constatou a existência de um grande desequilíbrio financeiro nas contas da Misericórdia, que tinha, na altura, "uma dívida superior a dois milhões de euros".
"Procurei tornar a gestão da Misericórdia mais transparente e eficiente. Quando esses desígnios fundamentais, que assumi por inteiro, se tornaram inviáveis por ação e omissão do Provedor, apresentei-lhe a minha demissão", justificou Nuno Carvalho, acrescentando, no entanto, que desconhecia a existência de eventuais "desvios" de dinheiro.
As críticas à gestão de Cardoso Ferreira começaram há mais de três anos, quando o então secretário, Sousa Pinto, denunciou a alegada falta de transparência das contas.
"Se eu tivesse provas na mão, teria feito a denúncia ao Ministério Público, como, provavelmente, agora alguém, que não eu, terá feito. Como não tinha essas provas, limitei-me a alertar que havia algumas despesas que deviam estar orçamentadas, mas que, durante alguns anos, estiveram sempre disfarçadas", disse Sousa Pinto, lembrando que saiu da Misericórdia em Setembro de 2012.
Segundo uma fonte dos órgãos sociais da Misericórdia de Setúbal, o Definitório (Conselho Fiscal) está a tentar investigar eventuais irregularidades que pudessem ter sido dissimuladas nas contas de gestão dos últimos anos.
"O Definitório quer apurar o que se passou, mas, no início deste mês, foi impedido de aceder às contas da Misericórdia", disse a fonte, estranhando o facto de terem sido negados elementos contabilísticos ao órgão que têm a função de fiscalizar as contas da Misericórdia.

Provedor nega "quaisquer irregularidades"
O atual Provedor da Misericórdia de Setúbal, que, para além das suspeitas de alegado desvio de verbas, também é acusado de ter feito adiantamentos de valores avultados a duas diretoras da instituição - Diretora Financeira e Diretora de Recursos Humanos -, garante que estes adiantamentos são legais e que, em determinadas circunstâncias, as Misericórdias têm a possibilidade legal de adiantar dinheiro a funcionários, que depois vão repondo o montante em dívida.
"Neste momento temos mais de 30 funcionários que beneficiam do apoio da Misericórdia", admitiu Cardoso Ferreira, negando qualquer favorecimento das duas diretoras.
Confrontado com o valor da rubrica Deslocações e Estadas do balancete da Misericórdia de Setúbal relativo a 2009, que ascendia a mais de 54 mil euros, valor que alguns elementos dos órgãos sociais consideram excessivo e que não estaria devidamente orçamentado, Cardoso Ferreira disse que a referida rubrica incluía pagamentos a diversos profissionais liberais, que "recebiam parte dos honorários em quilómetros e estadias".
"A partir de Janeiro de 2014, as Finanças mudaram as regras e deixou de ser possível pagar parte dos vencimentos através desta rubrica", justificou Cardoso Ferreira, adiantando que "alguns desses elementos foram integrados no quadro de pessoal e outros passaram a receber os honorários, integralmente, através de recibos verdes".
O Provedor da Misericórdia de Setúbal afirmou ainda que, nos últimos anos, de 2008 a 2015, terá gasto 50 mil euros (valor médio de 595 euros/mês) em deslocações e despesas de representação.
Quanto ao alegado desequilíbrio financeiro e à existência de um passivo de 2,5 milhões de euros na instituição que dirige, Cardoso Ferreira disse tratar-se de uma acusação que não corresponde à realidade, adiantando que o passivo da Misericórdia tem vindo a ser progressivamente reduzido.
Cardoso Ferreira assegurou ainda que vai eliminar, na totalidade, o passivo da Misericórdia de Setúbal, no prazo ano e meio, até Junho de 2017, como tem vindo a anunciar desde o início deste ano.
Para o Provedor da Misericórdia de Setúbal as acusações que lhe são imputadas resultam, apenas, da "proximidade das eleições" para os órgãos sociais daquela instituição de solidariedade social.

Utentes a sopa  e sandes 
Mas ainda há mais evidências contra a instituição. Os utentes dos lares Paula Borba e Acácio Barradas, em Setúbal, tiveram um prato de sopa e uma sandes para jantar, por volta das 18 horas, pelo menos entre 2012 e 2013, denunciou o antigo responsável pela área da alimentação na Santa Casa da Misericórdia de Setúbal.
António Gomes trabalhava na Ser Union, a empresa responsável pelas refeições da instituição, e revoltou-se com a situação. “Em 2012, a Santa Casa da Misericórdia pediu para diminuir os custos que tinha com a empresa e apresentou como proposta a preparação de menos refeições, no período de jantar, nos lares Paula Borba e Acácio Barradas”, relembra ao Jornal de Notícias.
Assim, António Gomes explica que a proposta “passou por acabar com as refeições completas à hora de jantar, servindo apenas uma sopa e uma sandes”. Com este sistema, a Santa Casa da Misericórdia conseguiu passar “dos 35 mil euros” para os “31 mil euros por mês”.
“Quando vi que a Santa Casa da Misericórdia de Setúbal apresentava como gastos de deslocações e de estadias mais 50 mil euros anuais, senti que não podia ficar calado. Afinal, essa verba daria para quase dois meses de refeições para os utentes”, desabafou.
Questionado pelo jornal diário, o provedor Cardoso Ferreira não confirma a denúncia e frisa que “estas situações devem ser discutidas em Assembleia-Geral da Santa Casa”.

Presidente reeleito 
Liquidar o passivo até 2017, requalificar o Lar Acácio Barradas e assumir a gestão do Externato Diocesano são objectivos para o próximo mandato
O actual provedor da Santa Casa da Misericórdia de Setúbal, Cardoso Ferreira, foi reeleito na quinta-feira, com 117 votos a favor, 20 votos nulos e seis votos brancos. Para o próximo mandato, o provedor aponta como meta no campo financeiro ter, “em 2017, o passivo completamente pago”, prosseguindo o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido, “sem despedimentos e mantendo as requalificações e os investimentos”.
É também ambição dos órgãos recém-eleitos para o mandato que agora se vai iniciar a requalificação e modernização do Lar Acácio Barradas, para “dar melhor qualidade de vida aos utentes”, refere. Cardoso Ferreira adianta que “a Misericórdia já sinalizou ao bispo de Setúbal a sua disponibilidade para vir a relançar o Externato Diocesano de Setúbal”, actualmente encerrado, e aguarda uma resposta. “Sendo um equipamento que está ligado à Igreja, ninguém melhor que uma instituição também ligada à Igreja para o assumir”, considera.
Cardoso Ferreira mostra-se “preocupado com a questão das políticas sociais”. “Não sabemos quais vão ser as orientações do novo Governo na área social, estamos expectantes sobre como podem afectar as misericórdias”, sublinha o provedor. 
Sobre as informações que têm sido veiculadas por suspeita de desvio de dinheiro, Cardoso Ferreira afirma que “as questões internas da Misericórdia são discutidas nos órgãos próprios” e “não podem andar na praça pública”, pois tal “causa inquietação e incerteza” ao funcionamento da instituição. Esta segunda-feira, vai realizar-se uma assembleia geral e o provedor apela a que “todos os irmãos que tenham dúvidas ou críticas compareçam e as coloquem”.

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