Há dias que começam pelo fim por Carla Marques


Para que servem os livros se não conseguimos ler olhares?  

Um dia, ainda o outono dava os primeiros passos no caminho do anoitecer, João olhou para  as rugas que marcavam trilhos pronunciados nas suas mãos, onde o calo sobressaia imponente no dedo médio da mão direita. Sabia agora que os anos não perdoavam! A expressão era da avó materna e até hoje nunca a tinha entendido. Que tinham os anos para perdoar?


O tempo foi sempre uma realidade abstracta, algo que balançava entre os dias que rasgavam folhas ao calendário e um acumular de esperanças ultrapassadas e esquecidas.
João enrolava esse tempo como uma meada de lã, de forma repetida e numa velocidade cronometrada pela força que lhe ia restando. Tinha medo da velocidade com que ele consumia a sua vida, mas sentia-se impotente para o fazer recuar.
João escrevia, primeiro por prazer, depois por profissão, depois novamente por prazer.
Nas palavras encontrava amigos para a vida, nos livros que lhe povoavam as divisões da casa saberes únicos que o desfolhar calmo das páginas não deixava perder.
Lembrava-se de escrever cartas às suas namoradas e de enviar da Guerra à sua mãe perdida em medos e canseiras notícias de que ia bem de saúde, apesar dos tiros que lhe cansavam os ouvidos. Os jornais eram grandes e demoravam horas a trazer para a rua as notícias que od ia anterior tinha debitado. João acompanhava esse fecho dos jornais até sentir a tinta ainda húmida deixar marcas nos seus dedos. Só depois descansava a cabeça na almofada cansada e os olhos no amanhecer suave do dia.
Depois chegaram as máquinas de escrever e o tempo acelerou um pouco. Anos depois já ele diminuía o ritmo dos passos que o levavam ao jornal e tudo ganhou uma nova velocidade. Pela primeira vez um computador entrou na sua vida. Primeiro a dúvida, o receio de não saber viver esta nova era…eram tantas as teclas, tantas as funcionalidades de que lhe falavam. Viveu o medo sozinho e perguntando aqui, olhando ali conseguiu escrever naquele ecrã cheio de luz que lhe magoava os olhos.
João vivia a vida ao ritmo que o século o obrigava. Pensava ele que com tantas máquinas a fazerem o trabalho dos homens seria fácil estes encontrarem tempo para as coisas que não faziam alegadamente poe falta de tempo!
Assim, qual não foi o seu espanto quando viu que dentro desse tempo que devia sobrar, havia tanto tempo a faltar!
Os homens já não olhavam para trás, deixaram de apreciar a magia das letras que nos livros faziam belas histórias intemporais, esqueceram-se de conversar nas falas rápidas de quem não tinha tempo!
João continuava a levar o seu livro diário na viagem entre casa e o trabalho. Poucos o acompanhavam nessa viagem ao mundo dos livros e quando entre tentativas de fazer renascer o livro perguntava a um jovem se já o tinha lido, recebia um olhar admirado que o fazia sentir parado no tempo. Por vezes ainda dizia: “devias ler, há tantas vidas dentro de um livro”.
Uns riam-se da sua ousadia, outros deixavam promessas vãs, outras ainda encolhiam os ombros, como se fosse uma linguagem diferente a que ele falava e assim João sentia que o mundo caminhava numa outra direcção!
Perguntava-se em surdina: “para que servem os livros se não conseguimos ler olhares?”
Nesse tempo de tantos tempos, nesse tempo de um tempo perdido, nesse tempo em que tanto se sabe, mas não há tempo para viver, João desfiava as contas de um tempo  em que apenas queria ter tempo para olhar…e saber ver!


Carla Marques 
Porto
Jornalista

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