Há dias que começam pelo fim por Carla Marques

Crónica de um dia inacabado 

A casa era pouco mais que uma casca de noz. Um quarto aberto para a sala onde as cadeiras varriam o chão gasto até à cozinha, também ela aberta ao único olhar que ali pairava. A casa não tinha segredos e Paulo também não. 



Todos os dias à mesma hora rodava a chave na única porta que se fechava naquela casa e contava os passos até ao metro. Eram invariavelmente os mesmos quer fizesse sol quer a chuva lhe molhasse o rosto sonolento. No metro era mais um! Antes, quando os dias ainda se faziam de surpresas e horas marcadas por pensamentos felizes olhava os seus ocasionais companheiros de metro, vez por outra ainda cumprimentava a senhora da mercearia em frente ou o homem que lhe servia o primeiro café do dia. Mas a mercearia fechou e da senhora forte com um sorriso maternal nunca mais soube e do António do café, onde os pastéis de nata sabiam a um pedaço do paraíso, a última notícia que recebeu foi que estava internado num qualquer manicómio onde o café sabia a palha seca, mesmo que ele não conseguisse distinguir os sabores de uma e outra coisa.
Aos poucos Paulo foi aprendendo a fazer a viagem com os olhos semi-fechados, embora quem se desse ao incómodo de olhar para ele pensasse que os levava semi-abertos. Eram todos desconhecidos e nem os parcos diálogos o interessavam.
O dia começava no café, seguia para um pequeno escritório onde as janelas encravadas não permitiam a entrada de ar ou de luz e acabava na mesma casa de portas abertas.
Paulo não queria um carro vermelho, nem a mulher do 3º esquerdo, apesar de sonhar com ela duas vezes por semana. Nem sequer pensava em cruzar o oceano nas ofertas low-cost que os seus colegas procuravam para fugir da rotina que vestiam com a roupa do dia a dia.
Paulo era um solitário na vida e nos sonhos.
Era um homem sem certezas, lia o jornal desportivo apenas para ter tema de conversa com os colegas do escritório durante os almoços de três quartos de hora na tasca em frente.
Era um homem sem convicções, ouvia o jornal da noite num dos poucos canais que a sua única televisão emitia e pensava que a política era uma coisa estranha, pois não se identificava com nada daquilo.
Era um homem sem ambições, o frigorífico completava todos os desejos que conseguia enumerar.
A família foi-se perdendo ano após ano e com ela o pouco que restava das sonhos de outrora. 
Lembrava-se que era quinta-feira porque a senhora do rés-do-chão limpava as escadas todas as quintas e acabava por lhe molhar invariavelmente as calças. Chegava ao escritório com um ligeiro cheiro a detergente que o acompanhava até à hora do almoço se fosse verão ou até ao lanche se o inverno já tivesse chegado.
Nessa quinta era outono e ele sabia que ainda sentiria o cheiro quando pegasse na ementa para ler as duas únicas ofertas que o pequeno restaurante oferecia.
-Paulo o diretor quer falar contigo!
Olhou para todos os lados a ver se era mesmo ele o visado. Afinal nem se lembrava do rosto do diretor, a última vez que o viu foi há dois natais passados, na única festa que a empresa deu aos funcionários.
Saiu do gabinete. Pegou no casaco sem o vestir e pensou em qual seria o melhor caminho para regressar a pé a casa, em tantos anos nunca o tinha feito!
Ao acaso e ignorando que o passeio estava mesmo ali ao lado foi andando com mil imagens a assolarem a cabeça cansada. Arregalou os olhos para tentar entender o que fazia aquela multidão de pessoas naquele edifício antigo. Antes de conseguir processar todas as ideias sentiu uma pancada forte entre o ombro e o pescoço.
Paulo caiu no chão, arregalou os olhos e fechou-os.
Nunca quis saber de política, nem de desporto, via um filme por semana na televisão e só leu os livros que na escola o obrigaram. Paulo nunca chegou a viver, até ao momento em que lhe disseram que havia uma crise no país que lhe tinha roubado o emprego, que no próximo mês deixaria de ter as suas rotinas e teria que encontrar rotinas novas.
Ficou em silêncio porque não sabia o que dizer e foi em silêncio que ouviu os gritos de quem como ele não sabia viver esta nova vida e foi em silêncio que sentiu o peso de um bastão a tirar-lhe o último suspiro e pela primeira vez pensou: “como se pode roubar algo a quem nada tem?”
Só o soube quando caiu no chão e descobriu que afinal a vida merece que se lute por ela! 



Carla Marques 
Porto
Jornalista

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